Mundo

Ferramentas de metrologia melhoram análise de cachaça e vodca em laboratórios
Estudo da USP cria padrão de qualidade para garantir segurança na análise de congêneres tóxicos em destilados, formados naturalmente durante a produção
Por Yasmin Constante - 16/12/2025


Ferramentas metrológicas avaliam se o método aplicado por laboratórios de análise é válido – Foto: Pexels


Pesquisadores do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP aprimoraram a gestão da qualidade em laboratórios de análise de bebidas destiladas, como cachaça e vodca. O grupo desenvolveu o Material de Referência Certificado e implementou Ensaios de Proficiência, ferramentas metrológicas essenciais que definem padrões e atestam a confiabilidade dos resultados laboratoriais no monitoramento de congêneres orgânicos – substâncias que conferem aroma e sabor, mas que podem ser tóxicas em concentrações elevadas. Os resultados foram descritos em um artigo publicado na revista Accreditation and Quality Assurance.

Para evitar que a toxicidade atinja os consumidores e cause prejuízos à saúde pública, laboratórios de análise monitoram a composição das bebidas destiladas. São os sistemas de gestão da qualidade que garantem que os resultados desses laboratórios sejam confiáveis.

Igor Olivares, professor do IQSC e orientador do estudo, explica que a metrologia – a ciência das medições – está ligada à gestão da qualidade. As ferramentas metrológicas buscam garantir confiabilidade dos resultados de análises, assegurando que os processos estejam dentro dos padrões exigidos. “Por exemplo, se eu vou produzir um capacete, preciso utilizar ferramentas de metrologia e de gestão da qualidade para garantir que o capacete funcione para aquilo que foi projetado”, explica o docente.

Segundo Rhaissa Bontempi, química e primeira autora do artigo, o controle de qualidade atua nos bastidores da análise. Ela destaca que há uma percepção equivocada de que o processo se resume à simples execução da análise laboratorial. “Tem toda uma parte gigante atrás que é esse processo de validação dos resultados”, afirma Rhaissa, ressaltando que o processo de gestão da qualidade é essencial para a credibilidade de qualquer laudo emitido.

Ferramentas metrológicas

A presença de congêneres orgânicos em bebidas destiladas é permanente, uma vez que fazem parte do processo de produção. Segundo Rhaissa Bontempi, não é possível retirá-los e por isso existem concentrações adequadas determinadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. “Como eles são produtos secundários da produção da cachaça e da vodca, vão estar na bebida; não tem como tirar, eles fazem parte do processo. O que a gente faz é monitorar para avaliar se estão em níveis aceitáveis”, completa.

Substância principal de uma análise, os analitos escolhidos para a vodca foram: acetato de etila, metanol e 2-metil-1-propanol; enquanto para a cachaça foram metanol, propanol, 2-metil-1-propanol e 2-metil-1-butanol. A pesquisadora explica que os congêneres são quase os mesmos e que a diferença está, sobretudo, nos níveis de concentração.

A pesquisa desenvolveu ferramentas de controle de qualidade para análises dessas concentrações por meio da produção do Material de Referência Certificado (MRC) e aplicação de Ensaios de Proficiência (EP).

Para se exemplificar a aplicação de um MRC, pode ser feito um paralelo com um peso-padrão para balanças, utilizado para verificar se o peso adicionado está de acordo com o demonstrado pelo visor da balança. O MRC desenvolvido contém concentrações das substâncias avaliadas para servir de referência para laboratórios de análise, enquanto o EP é uma prova prática, na qual o responsável pelo ensaio envia um material desconhecido para que os laboratórios tentem achar o valor correto das concentrações dos compostos tóxicos avaliados.

A produção do Material de Referência Certificado foi feita após uma série de análises em cachaça e vodca, disponibilizados por uma companhia de bebidas parceira. O desenvolvimento foi feito através da técnica de spiking, ou adição de padrão, na qual quantidades conhecidas das substâncias foram adicionadas nas bebidas estudadas. “A gente usou como base a bebida e, em cima dela, colocamos os analitos”, completou.

Para a certificação do material, foram necessários testes de estabilidade que avaliam, com variação de temperatura, a conservação a curto e longo prazo, homogeneidade, que confirmam a consistência entre os diferentes frascos de MRC produzidos, e fazem a caracterização, que atribui valor da propriedade com base em métodos analíticos.

Além do MRC, existe o Material de Referência (MR), porém o grupo optou por trabalhar com uma opção mais confiável. “O MRC tem o certificado junto, por isso ele é o mais indicado para os laboratórios. Ele é mais caro e indicado, porque nele está descrito qual é a estabilidade e se ele está homogêneo ou não”, explica Rhaissa.

Olivares explica que os laboratórios são responsáveis por analisar a bebida, mas o que o estudo fez foi avaliar a concentração de determinados contaminantes da cachaça. Após o desenvolvimento científico do produto, os pesquisadores o forneceram gratuitamente para laboratórios de análise de bebidas.

Para a aplicação do EP, foi enviado um protocolo, que incluía introdução, objetivo, parâmetros e método de análise, para os interessados. Porém, também era possível que realizassem os testes de acordo com seus próprios métodos. Os laboratórios receberam dois frascos de diferentes materiais de referência e puderam escolher a substância a ser avaliada.

As duas ferramentas, o MRC e o EP, têm finalidades distintas: enquanto o Material de Referência Certificado fornece suporte para os processos internos de controle de qualidade, os Ensaios de Proficiência avaliam o desempenho do laboratório por meio de testes cegos, o que garante a imparcialidade nas avaliações. Segundo Rhaissa, os processos são complementares: “O MRC deu certo, mas e se só ele não for suficiente? Tem o ensaio de proficiência”.

Contaminação natural de bebidas

Ferramentas metrológicas podem ser aplicadas em diversas áreas, mas a cachaça foi escolhida por ser um produto nacional. Este é um diferencial da pesquisa, que conseguiu produzir um material que avalia a qualidade de uma bebida própria. Olivares explica que não existem materiais de referência certificados para o produto, internacionalmente, porque “a cachaça é um produto característico do Brasil”.

A parceria com uma companhia de bebidas também motivou o estudo com bebidas destiladas, que possuem alta procura. Rhaissa Bontempi explica que este é um setor complexo, por isso é importante ter formas de monitoramento. “É uma coisa que sempre dá problema em algum lote de bebida. E é meio difícil controlar os produtores”, completa.

Apesar disso, o docente conta que as ferramentas não são utilizadas para casos de adulteração, uma vez que elas indicam casos de contaminação natural. “Por exemplo, uma bebida adulterada, que está rica em metanol, você envia para o laboratório analisar a concentração e a do metanol vai ser tão alta que ele nem precisa de um MRC para identificar essa adulteração”, detalha Olivares.

Mais informações: igorolivares@iqsc.usp.br, com Igor Olivares; e rhaissa@alumni.usp.br, com Rhaissa Bontempi

 

.
.

Leia mais a seguir